Dr. JORGE MÁRCIO PEREIRA DE ANDRADE (Médico, Psiquiatra, Psicanalista e Analista Institucional – DEFNET – Campinas – SP) jorgemarcio@mpc.com.br
Primeiramente esclareço que este texto é inacabado, assim como será inacabada qualquer discussão sobre o tema das Deficiências. Não tenho a pretensão de esgotar o tema aqui, muito pelo contrário, por se tratar de uma proposta que visa o futuro, a afirmação e a implicação da continuidade de discussão do Estatuto são imprescindíveis. Esta é a principal função deste texto: solicitar a continuidade da discussão do Pl. -06/2003, em especial por suas questões críticas e seus fundamentos, a começar pela não adoção dos princípios atuais de defesa de Direitos Humanos, termo que consideraria fundamental já primeira linha do documento/minuta, posto que é utilizado como base para todos os programas, políticas e legislações a nível internacional, dos quais nosso País não poderá se excluir ou negar a reconhecer.
Neste momento vivo um triplo acontecimento: 1º – o recebimento de mensagem do Senador Flavio Arns (PT-PR) sobre a realização de um seminário por via Internet sobre a minuta do Estatuto da Pessoa com Deficiência, a ocorrer no dia 29 de março de 2006, e demais mensagens via internet, e, em especial, o documento com a posição do CONADE (Conselho Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência), com severas restrições e questionamentos sobre a necessidade de “aprofundamento e democratização dos debates, num prazo condizente com a natureza e complexidade do tema…”; 2º – pela minha participação e implicação com participante da Conferência Estadual dos Direitos da Pessoa com Deficiência de São Paulo, a se realizar no dia 30 de março de 2006, incluído como delegado eleito da Conferencia Regional de Direitos da Pessoa com Deficiência, pela cidade de Campinas; 3º – bem como devido à minha participação de uma mesa redonda, com o título: “A Sociedade e o Deficiente: Direitos do Cidadão com Deficiência”, proposto pela Jornada de Neuro-reabilitação na Infância e Adolescência, promovida pelo Curso de Especialização em Fisioterapia Aplicada à Neurologia Infantil da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp, Campinas, SP, a se realizar nos dias 31/03 e 01/04.
Relatei estes acontecimentos e eventos para dizer da intensidade micropolítica que estou vivenciando, diante de um tema de tal importância macropolítica, o Estatuto, ao qual já venho fazendo questionamentos desde de 2003, com revela o texto da Revista Sentidos, nº 20 /ano 4, na matéria “O que está em jogo no debate sobre o Estatuto do Deficiente”, págs. 33 a 41, onde já declarava: “ _ O presidente do DefNet, Jorge Márcio, além de criticar o que chama de visão medicalizada da condição da deficiência, aponta certos termos utilizados, como ‘sempre que possível’, aplicada a alguns artigos ( à época ) que “abrem margens para interpretações parciais da lei, não contemplando a necessidade de uma afirmação real de direito das pessoas com deficiência.”
Este passado, desde 2003, quando ainda era chamado de Estatuto da Pessoa Portadora de Deficiência, até as atuais transversalidades momentâneas, me estimularam, mais uma vez, assim como a impossibilidade de intervenção junto ao Seminário proposto, nesta data, de solicitar que outros meios, além da INTERNET e das Vídeo-conferências, posto que há ainda um grande contingente de cidadãos e cidadãs sem nenhum acesso a computadores ou com tempo vital disponível para estarem em Assembléias Legislativas Municipais, para que se democratizem e debatam alguns pontos de reflexão sobre os termos e as construções do referido estatuto, levando para os fóruns já anunciados da Conferência Estadual dos Direitos das Pessoas com Deficiência, de todo país, a serem realizados, assim como para a Conferência Nacional dos Direitos das Pessoas com Deficiência, a se realizar em Março, independentemente do tema já anunciado sobre a questão da Acessibilidade.
Primeiramente informo que o Estatuto vem sendo modificado, com participação de alguns atores sociais, individual ou coletivamente, o que não impediu que algumas posições e termos continuassem a ser empregados na atual minuta enviada pelo Senador Flavio Arns, ora em debate.
Algumas considerações, portanto, se fazem necessárias:
– O Estatuto já esteve, historicamente, citado como uma necessidade no trabalho: “A defesa dos interesses da pessoa portadora de deficiência”, de Mortari e Paula (1997), encontrável no livro: Direitos da Pessoa Portadora de Deficiência, uma publicação oficial do Instituto Brasileiro de Advocacia Pública, onde esta autores, respectivamente uma Promotora da Justiça de São Paulo e um Procurador da Justiça de São Paulo afirmavam que: “Assente que um código ou estatuto sistematizado não transformará a realidade de exclusão que caracteriza o conjunto das pessoas com deficiência no Brasil, porquanto somente a prática motivará a necessária revolução cultural, é possível pensar em uma Lei que seja potencialmente mais eficaz do que o amontoado de normas hoje em vigor…”, lembrando logo em seguida que, para além da sistematização das regras existentes, fazia-se e faz-se necessário pensar em um documento legal que cobre judicial e extra-judicialmente o direito objetivo, assim como que penalize “práticas discriminatórias e excludentes”. Neste sentido é que o atual documento, já indicado como “possibilidade” em 1997, ainda não nos contemplará em nosso desejo de um formato Estatuto, posto que não contenha como principal característica, em seus termos fundamentais na conceituação de deficiências, a sua nascente nas desigualdades sociais e na exclusão sócio-econômica e política brasileira, além de não reafirmar por princípio a questão dos Direitos Humanos das Pessoas com Deficiência.
O conceito ora utilizado é uma repetição e construto ainda duplamente alicerçado no complexo deficiência/doença, utilizando-se uma visão questionável caso tenhamos como parâmetro a definição da Convenção Interamericana para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra as Pessoas com Deficiência, chamada Convenção da Guatemala, onde é conceitua-se “deficiência” por “uma restrição física, mental ou sensorial, de natureza, que limita a capacidade de exercer uma ou mais atividades essenciais da vida diária, CAUSADA OU AGRAVADA PELO AMBIENTE ECONÔMICO OU SOCIAL”. (art. 1, nº 1), sendo estes termos e afirmações grifados excluídos da atual minuta em apreciação. Pergunto e não encontro a justificativa imediata desta supressão, já que o restante da conceituação da Convenção encontra-se reproduzido na minuta, porém ao se verificar os demais termos das ‘disposições preliminares’, ficam claras as inclusões de condições médicas e de doença que mais estão para a inclusão na Classificação Internacional de Doenças e situações relacionadas à Saúde, do que da atual Classificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde (CIF – ICF) da OMS (2001), que trouxe um possível reforço para a determinação causal de deficiências a partir das questões ambientais e da situação econômico social dos cidadãos e cidadãs que passam pelos caminhos excludentes das deficiências, incapacidades e desvantagens, ressignificando e esclarecendo o conceito de doença associado às deficiências, mudando radicalmente a concepção para uma visão da funcionalidade e da Saúde, como parâmetros para a atenção, cuidados e, quiçá para a aplicação das leis em nosso País.
Lembro, portanto, que se o Direito permanecer na superfície apenas das deficiências, com uma postura ainda vitimizada e tutelada das pessoas com deficiência, sem um aprofundado debate sobre a sua heterogeneidade e multiplicidade, sem perceber a questão imprescindível da construção histórica de estigmas e preconceitos, formados pela lógica da exclusão social, ocorrerá, a meu ver, como está ocorrendo, a construção de mais um documento para cidadãos e cidadãs de “de papel”, posto que as deficiências, e, consequentemente as pessoas com deficiência, por mais que se lute para sua inclusão, são e serão parte de um sistema de exclusão, pois somos remetidos sempre à questão da diferença, embora sejam tratadas no campo das diversidades humanas.
Enfim, pelo princípio fundamental de que as primeiras e, quiçá, mais importantes definições já começam nas primeiras linhas de um documento legal, elaborado para que se torne um instrumento de defesa, de longo prazo e eficácia jurídica, venho a público solicitar, mais uma vez, que continuemos a debater, discutir, rever, reformular, revisar, reconhecer os erros, aprimorar os acertos e promover a maior socialização possível do chamado Estatuto da Pessoa com Deficiência, o qual já denominou, inclusive, em sua primeira versão, as pessoas com deficiência com estigmatizante termo de ‘HIPOSUFICIENTES”.
Sugerimos que o Artigo 6º da atual minuta seja modificado, muito embora muitos outros conceitos precisem e deverão ser revistos, que se utilize a Convenção da Guatemala ao se conceituar discriminação contra as pessoas com deficiência como “toda diferenciação, exclusão ou restrição baseada em deficiência, antecedente de deficiência, conseqüência de deficiência anterior ou percepção de deficiência, presente ou passada, que tenha o efeito ou propósito de impedir ou anular o reconhecimento, gozo ou exercício por parte das pessoas com deficiência de seus direitos humanos e suas liberdades fundamentais”, já que, como afirmado anteriormente, algumas das principais desvantagens e desigualdades , que forjam problemas, às vezes somados à miséria social, em muitos países, como no Brasil, têm origem na sociedade, ou seja decorrem de barreiras sociais e não, apenas, das barreiras funcionais ou arquitetônicas, ligadas à ausência de políticas públicas estruturais, elaboradas e implementadas com a participação ativa de cidadãos e cidadãs com deficiência, como por exemplo, da participação política dos Conselhos Municipais de Pessoas com Deficiência.
Pelo reconhecimento de todas as Declarações (Guatemala, Madri, etc…) e das mais atuais concepções e a imprescindível participação ativa e ampliada dos principais interessados neste debate: as PESSOAS COM DEFICIÊNCIA.
(Texto enviado para o Exmo.sr. Senador Flavio Arns através do e-mail: Imprensa.flavioarns@terra.com.br A ser impresso e distribuído para os eventos citados no texto, bem como enviado pelo INFO ATIVO DEFNET, pela Internet.)
INFO ATIVO DEFNET Nº 2440- ANO 10 – 29 de MARÇO DE 2006
RESPONSÁVEL: DR JORGE MARCIO PEREIRA DE ANDRADE – WWW.DEFNET.ORG.BR