Após anos de esperanças frustradas, pesquisadores em distrofia muscular estão prontos para iniciar os testes em seres humanos.
Quando Ashanthi DeSilva (4 anos de idade) tornou-se a primeira pessoa a ser submetida, em 1990, a um tratamento baseado em terapia genética, muitos acreditavam que a ‘próxima fronteira’ havia chegado. Pela substituição dos genes defeituosos, por saudáveis, a terapia prometia sanar um enorme número de doenças hereditárias, até então tidas como incuráveis: câncer, distrofias musculares, etc.
Mas somente hoje, 15 anos após aquele procedimento revolucionário, os pesquisadores estão se preparando para iniciar estudos em terapia genética aplicada a seres humanos com distrofia muscular, uma doença hereditária que produz a degeneração muscular.
Mas se o defeito genético que causa a doença foi identificado há 20 anos atrás, o que provocou tanta demora?
O motivo certamente não foi aquele primeiro experimento: ele foi um sucesso. Ashanthi DeSilva sofria de uma doença fatal e extremamente rara chamada “deficiência de adenosina deaminase”, ADA. Sem um gene ADA saudável, crianças com a doença não conseguem produzir uma enzima que auxilia o organismo a livrar-se dos subprodutos tóxicos, enfraquecendo seriamente seu sistema imunológico e deixando-as suscetíveis à mais leve infecção.
Os médicos inseriram o gene para a produção da enzima ADA em células sanguíneas retiradas dela mesma, e re-introduziram essas células de volta à corrente sanguínea. O defeito foi sanado, e a menina melhorou.
Essa experiência bem sucedida disparou dezenas de outras experiências em humanos, para testar a terapia genética em outras doenças hereditárias. Elas seguiam a mesma receita básica: primeiro, isola-se o gene causador da doença. Em seguida coloca-se o gene “empacotado” dentro de um “vetor” ou “transporte”, normalmente composto por um vírus inativo que não pode se reproduzir ou causar doenças, mas age como um míssil que leva sua carga a um destino final.
Então injeta-se esse vetor no corpo, normalmente no tecido afetado pela doença, como músculos, no caso da distrofia muscular. Dentro das células, o vetor descarrega sua “carga genética”, que começa então a produzir a proteína faltante e as restaura ao normal.
Essa era a teoria, mas infelizmente as coisas não foram bem assim. Muito poucas das experiências foram bem sucedidas, e a esperança foi frustrada.
Então ocorreu algo ainda pior: em 1999, um jovem com uma rara doença metabólica, chamado Jesse Gelsinger, faleceu após passar por uma terapia genética experimental, o que fez com que todas as outras experiências clínicas semelhantes fossem suspensas, e houvesse muita resistência da comunidade científica com relação à técnica, segundo relata Dr. Richard Jude Samulski, um especialista em genética da “University of North Carolina-Chapel Hill”. Isso tudo atrasou as coisas drasticamente.
As coisas ainda piorariam mais, antes que melhorassem.
Em 2003, o FDA (Food and Drug Administration) suspendeu 30 outras experiências após duas crianças em um estudo francês sobre terapia genética terem desenvolvido leucemia. Logo depois, um estudo usando terapia genética em hemofilia foi cancelado quando um dos participantes apresentou danos ao fígado.
Entretanto o Dr. Samulski estava decidido a continuar. De fato, ele afirma que as dificuldades permitiram que os pesquisadores tivessem tempo para explorar melhores formas e técnicas mais seguras para introduzir novos genes dentro das células. Muitos dos problemas puderam ser relacionados com o sistema utilizado para levar os genes para dentro das células. As primeiras gerações de vetores, normalmente vírus inativos ( adenovirus ou retrovirus) frequentemente causavam efeitos tóxicos, explica ele.
A perseverança dos pesquisadores valeu a pena. Ano passado, a Associação Americana de Distrofia Muscular (MDA) agraciou com financiamentos três equipes de pesquisadores americanos, incluindo a equipe do Dr. Samulski, permitindo-as
desenvolver experiências em humanos portadores de distrofia muscular de Duchenne.
E a corrida continua…
Dra. Paula Clemens, uma especialista em terapias genéticas da Universidade de Pittsburgh, diz que estamos em um momento muito importante. Embora ainda cedo, os pesquisadores estão trabalhando em técnicas que poderiam corrigir o problema básico, isto é, o gene mutante. Se isso funcionar, poderemos um dia corrigir os genes dentro dos músculos cedo o suficiente para prevenir quaisquer danos.
A distrofia muscular de Duchenne é candidata perfeita para uma terapia genética. Ela provoca um enfraquecimento progressivo de todos os músculos do corpo, e não há cura ou tratamento a longo prazo. Ela é também muito freqüente: 1 em cada 3000 meninos desenvolvem Duchenne, e não há discriminação de raça ou etnia. E mais relevante ainda, conhece-se hoje a localização do defeito genético: ele impede o organismo de produzir uma proteína chamada distrofina, que manteria os músculos estruturalmente fortes.
Dr. Samulski. explica que essa proteína é responsável pela integridade da membrana celular do músculo, e em pessoas com o gene afetado, essa membrana torna-se frágil, causando uma reação inflamatória à medida em que os glóbulos brancos do sangue correm para reparar o dano. Resultado: um ciclo vicioso onde o músculo se degenera e o sistema imunológico tenta remover os danos, provocando ainda mais inflamação e mais enfraquecimento muscular.
Aprendendo com os erros do passado, todas as 3 equipes de pesquisadores apoiadas pela MDA acreditam ter criado vetores que serão mais eficientes e seguros que os antes existentes. E eles tem novos meios de administrar os genes em quantidade que acreditam ser suficientes para frear a doença. Cada equipe ataca o problema por ângulos ligeiramente diferentes, mas todas tem que superar as mesmas dificuldades.
Primeiro, o tamanho do gene em si: o gene da distrofia é tão grande (duas a sete vezes maior que um gene típico) que “empacotá-lo” dentro de um vetor é muito problemático. E ainda há que se selecionar o meio mais seguro e eficiente para levar esse “carregamento” para dentro dos músculos.
.
Para superar o problema relativo ao tamanho do gene, o Dr. Samulski, e uma outra equipe conduzida pelo Dr. Jeffrey S. Chamberlain, estão desenvolvendo uma versão em “miniatura” do gene da distrofina.
Para criar o “mini gene”, Dr. Chamberlain identificou partes da proteína que são essenciais, e desprezou o resto. A versão montada por eles, nesse esquema de corta-e-cola, tem aproximadamente um terço do tamanho do gene integral.
O obstáculo maior é conseguir introduzir esse mini-gene nas células musculares do corpo inteiro. Para conseguir isso, sua equipe decidiu usar um “AAV” – adeno-associated virus, como meio de transporte, porque eles apresentam duas vantagens: conseguem se manter no interior dos músculos por um longo tempo, e não são “rejeitados” como “corpos estranhos” pelo sistema imunológico do corpo. A rejeição pode interferir com o processo de “entrega” do mini-gene às células, e até causar algum mal.
Em experiências com camundongos publicadas em 2004, o Dr. Chamberlain e seus colegas demonstraram que aplicando-se apenas uma injeção de vetores AAV “carregados” com os mini-genes da distrofina, diretamente na corrente sanguínea, houve um aumento dramático na produção de distrofina nos músculos do corpo inteiro.
Ele diz “fomos diretamente para a corrente sanguínea, e atingimos todas as células musculares afetadas, o que representa uma técnica de tremendo impacto. Os camundongos não recuperaram toda a força, mas recuperaram muito dela”.
Em humanos, também, o objetivo final é administrar o carregamento de mini-genes diretamente na corrente sanguínea, de forma a alcançar todas as células musculares do corpo. Mas em termos de testes clínicos, iniciaremos por uma única injeção intramuscular em um braço ou perna, como numa vacinação, e tratar apenas uma limitada região do membro. Temos que nos certificar quanto à segurança do procedimento antes de avançarmos, explica o Dr. Chamberlain. Alem disso deve-se determinar se os mini-genes produzem bastante distrofina no local da injeção.
A equipe do Dr. Chamberlain trabalha agora nos detalhes burocráticos que envolvem o teste clínico, e espera iniciá-lo dentro de dois anos.
A equipe do Dr. Samulsk também trabalha com o mini-gene da distrofina, embora ligeiramente diferente. Essa versão de mini-gene foi descoberta por seu antigo aluno de pós graduação Dr. Xiao Xiao, da Universidade de Pittsburgh.
Pessoas com esse mini-gene da distrofia desenvolvem uma forma mais branda da doença. Elas apresentam enfraquecimento muscular, mas não tão severo quanto o que ocorre em crianças com Duchenne, diz ele, e algumas pessoas estão caminhando e ainda levando uma vida razoavelmente normal.
O que o Dr. Xiao criou em laboratório, afirma ele, foi um mini-gene da distrofina que imitaria o gene original da distrofina suficientemente bem que corrigiria o defeito em crianças portadoras de Duchenne.
Os testes funcionaram em modelo animal, colocando o mini-gene dentro de um vetor viral e o injetando em animais que apresentam algo muito semelhante a Duchenne. Eles não só recuperam a força muscular, mas também viveram mais tempo que os animas não tratados.
A equipe do Dr. Samulski ainda precisava resolver o problema de qual seria a melhor forma de levar o mini-gene para o interior do corpo da pessoa. Eles também começaram com os vetores AAV, que segundo ele seriam os únicos virus que não causam doenças. Eles os modificaram no que pensam ser um sistema ainda mais eficiente de distribuição.
Pensem nos AAV como “caminhões”, explica ele. Os vírus tem algo como “códigos postais” que os encaminham para diversas partes do organismo. Colocamos em nosso AAV um endereçamento que os leva diretamente às células musculares. Esses vírus, ou nano partículas biológicas (BNP), são desenvolvidos especificamente para atingirem as células musculares.
Mais uma vez os testes em animais funcionaram. As BNP injetadas descarregaram seus mini-genes diretamente nos músculos, disse ele. Os ratos melhoraram e viveram mais tempo. Agora eles estão sendo monitorados para se detectar quaisquer efeitos tóxicos que possam se desenvolver ao longo do tempo.
Dependendo da aprovação do FDA americano, órgão que regulamenta e controla as pesquisas nos EUA, ele espera iniciar os testes de segurança em humanos por volta de fevereiro.
O primeiro teste clínico incluirá seis pacientes, nos quais se injetará uma ou duas doses do mini-gene em seus músculos. Depois disso aguardaremos um mês e faremos uma biópsia muscular, que nos permitirá verificar se os genes começaram a produzir distrofina, e se o processo foi seguro.
Uma outra técnica está sendo utilizada pelo Dr. Jon Wolff, professor de pediatria e genética médica na Universidade de Wisconsin, Madison”. Ele não utiliza vetores, e pretende injetar as chamadas “DNA nuas”, ou “naked DNA”, que são os tijolos
dos quais os genes são construídos. Ele diz que uma das vantagens dessa técnica é que pode-se injetar um gene gigante inteiro, como é o caso do gene da distrofina. Outra, claro, é que nenhum vetor viral é necessário, o que pensa ele, reduz riscos de efeitos tóxicos.
Mesmo que os AAV, ou mesmo as formas sintéticas de AAV pareçam seguras, há sempre a possibilidade de reações indesejadas, explica. Isso porque o corpo monta uma resposta imunológica sempre que vê um invasor externo. Temos experimentado sistemas para introduzir genes nos músculos, baseados em técnicas não virais, desde 1989, justo porque nos preocupamos que uma resposta imunológica possa fazer com que a pessoa adoeça, afirma o Dr. Wolff.
Em um estudo preliminar conduzido na França, o procedimento de injetar “naked DNA” diretamente nos braços de nove meninos com Duchenne e distrofia muscular de Becker, provou ser seguro, e provocou aumento na produção de distrofina. O Dr. Wolff espera iniciar os testes de segurança nos EUA ainda esse ano.
O Dr. Samulski acredita que o método viral tem vantagens sobre o “naked DNA”, porque persiste na célula por muito mais tempo (seis anos em macacos, e talvez para sempre). Assim, o tratamento utilizando vetores virais pode ter que ser aplicado apenas uma vez, ao passo que o de “naked DNA” precisa ser aplicado muitas vezes.
Se qualquer uma dessas formas de tratamento provar ser segura, os pesquisadores seguirão para estudos maiores e de mais longa duração, para comprovar sua eficiência e eficácia.
Mas o Dr. Wolff diz “Isso não significará a cura. Mas conseguiremos preservar as funções de braços, mãos, e melhorar a qualidade de vida das pessoas.”
O mesmo afirma Dr. Samulski: “Essas técnicas não conseguirão reverter danos musculares já existentes, mas apenas preservar funções e a integridade das células musculares existentes. Quanto mais cedo a intervenção ocorrer, melhores os resultados.”
Fonte: Edição On-line da revista Neurology Now